segunda-feira, julho 26, 2010

O Culpado

Até aos anos 60, a vida de Jocielson foi um espectáculo. Era o Brasil no seu esplendor: praia, suruba, caipirinha, praia, samba, caipirinha, mulheres bojudas ao nível da retaguarda mas incrivelmente planas do outro lado, descanso, caipirinha, calor, peladinhas na praia e caipirinha. Perereca era uma dessas mulheres que levava a vida a dizer “meu bem”, “que gostoso!”, “pois não” e coisas que só as brasileiras sabem dizer com aquele sorriso imaculado na cara de maneira a parecer que estão a sentir realmente o que estão a dizer. O que era mentira, e ainda é, mas que era óptimo, e talvez ainda seja, para fazer bom ambiente. Eram tempos dourados. Ninguém trabalhava e essa foi uma tendência que se manteve impecavelmente intocada até hoje. Só se corria para jogar à bola e para apanhar o ónibus a caminho do boteco ou da praia, e isto se já não se morasse numa proto-favela junto à praia, onde metade do areal servia para a instalação de bares artesanais para a disponibilização de bebidas alcoólicas. Jocielson e Perereca encontraram-se por casualidade numa praia num dia de folga, quem diria?, quando o primeiro calculou mal o timing de uma finta durante uma pelada e a bola saiu desgovernada, calcorreando alguns metros na areia até atingir a bunda de Perereca, que estava deitada de barriga para baixo a apanhar búzios para a sua refeição. Ou à espera do destino. A bola perdeu-se para sempre naquele universo de carne. Mas Jocielson não se importou: ele e Perereca cimentaram logo ali uma química brindada com caipirinhas ao pôr-do-sol. Ao som da bossa nova trocaram carinhos e ficaram por lá até as estrelas preencherem o céu. E depois apareceu um tucano gigante que se meteu à frente da nossa vista a vender-nos guaraná e mais ninguém ficou a saber ao certo o que ambos estiveram a fazer até tão tarde.
O que é indiscutível é que a vida de Jocielson mudou nesse ano de 1960. Houve um dia em que ambos estavam de folga, como seria de esperar, e Perereca apareceu com uma barriga um bocado mais saliente. Jocielson começou logo a desconfiar, porque caipirinha não engorda e Perereca não podia engolir bolas de futebol sem o seu consentimento. Perereca estava muito feliz, contudo, e isso tanto podia ser do facto de estar grávida de Jocielson ou pelo facto de ter bebido muita caipirinha nesse dia. Infelizmente para Jocielson, Perereca tinha largado o álcool duro com o método “cold turkey” e agora só bebia cerveja acompanhada de abacate, abacaxi, goiaba, maracujá e mais uns quantos frutos que compõem o Bongo. O que era melhor para o fígado mas de efeito pernicioso para o intestino. Não era uma situação “win-win”. Jocielson sentiu o seu mundo a desabar, como se um Roberto tivesse chegado à sua baliza por 8,5 milhões, uma figura de estilo bastante válida se não estivéssemos em 1960. “Ó aí”, disse a babada Perereca, “si fô minino, vai sê jogado dji futjibóu”. O que ela não disse é que se fosse menina iria trabalhar para um restaurante de um centro comercial da zona metropolitana de Lisboa, com sorte; mas, felizmente para Perereca, o bebé saiu mesmo com uma espécie de cordão umbilical permanente e, hossanas ao Senhor, queria jogar à bola.
A vida colorida de Jocielson tornou-se negra. Ou acastanhada. É a cor das fraldas. Já não havia praia 360 dias por ano; já não havia as 30 e tal caipirinhas horárias do costume e o miúdo estragou-lhe grande parte do seu descanso. “Maldição!”, desabafou Jocielson, que ainda equacionou fugir para o Paraguai para livrar-se daquele fado em que se tinha tornado o seu sambinha de Verão. “Para quê?”, perguntou Perereca. “Paraguai”, respondeu Jocielson.
Estava claro que a culpa da situação era do miúdo. O culpado era o nenê. E se o culpado é sempre o mordomo e todos mordomos se chamam Jarbas, com excepção do tipo do Ferrero Rocher que se chama Ambrósio e que nem será bem um ser humano para aturar aquela gaja que tem um gosto para chapéus e vestidos insuportável e que só quer é exposições de arte e limusinas e essas cenas que nem ao Nuno Gomes interessam, então o nenê iria chamar-se Jarbas. E Jarbas ficou.
Jarbas cresceu com o ódio do pai e a alegria despassarada da mãe, que passava os dias a sambar nas ruas do vilarejo e as noites a fazer tricot junto a um coqueiro na praia ao som de um cavaquinho tocado pelo Seu Eleutério, que era um velhote de pele encarquilhada e sem dentes que bebia cachaça pura e que existia sempre junto a uma praia do Brasil, qualquer uma que ela fosse, e que um dia as crianças descobrem que apareceu a boiar no alambique da aldeia e que vai ser substituído por um ex-jogador de futebol, também sem dentes, chamado Clodoaldo, ou qualquer coisa do género, que esteve algures no fim de carreira a jogar no Portimonense, sem sucesso. Depois as coisas tornaram-se ainda mais complicadas com o advento da Ditadura Militar, que obrigou os brasileiros a sambarem 3 horas por dia útil e 12 horas aos fins-de-semana (que iam de 4ª a Domingo) e os restringiu a beber somente 10 caipirinhas por dia, com a promessa que podiam ir à praia 200 dias por ano, no máximo. Com a Ditadura não se brincava e se esta era, ainda por cima, Militar, ui, era melhor ter cuidadinho. Mas isso já é demasiada política e, sendo este um blogue de futebol, ou lá o que é, deixo esta análise para o Nuno Rogeiro, que também percebe de futebol e de como jogar ao Risco com o Martim Cabral, que fica todo lixado por ver sempre o Nuno Rogeiro a movimentar os soldadinhos do Quebeque para o Ontário com a facilidade de quem contrata jogadores para o FCP, a sacar duplos e triplos 6 com os dados e a ganhar sem mudar um pouquinho a disposição do seu cabelo. Aliás, o Nuno Rogeiro percebe de tudo e até percebeu que nós algum dia iríamos referir o seu belo penteado por aqui. O Nuno Rogeiro só não é como o Mourinho porque não quer e porque falar com embaixadores dá outro estilo, a cena dele é outra, mind ya.
Bom, Jarbas fez-se homem, dando uns toques na praia e aprendendo o b-a-bá do samba com Perereca, ou seja, como abanar a celulite com saltos altos, mas sempre carregando a cruz de Jocielson às costas, que nunca lhe perdoou o facto de Jarbas lhe ter estragado a juventude. Chegámos aos anos 80 e, no meio de tanta telenovela com gente de chumaços nos fatos verdes e laca em cima de mullets desavergonhadas, houve um momento de lucidez na cabeça de Jocielson. “Ó aí, rapai”, apontou Jocielson a Jarbas, enquanto se servia de mais uma caipirinha, “tu vai ganhá grana prá tua família prá Europa, tu tá ouvindo?”. Jarbas estava meio distraído pelo facto de Perereca estar a dar à luz o seu 5º irmão enquanto batucava numa caixa de fósforos, mas percebeu a mensagem. Fez a trouxa, que consistia apenas num par de chinelas, duas limas (um fruto e uma ferramenta, pelo sim pelo não) e gelo picado que nunca chegou ao destino, e fez-se à vida, para a Europa. A velha Europa onde residia o Eldorado do jogador de futebol.
Infelizmente para Jarbas e Jocielson (não tanto para Perereca, que estava distraída a escolher bikinis), o máximo que conseguiu foi chegar a Portugal, que não era bem Europa a sério e que tinha demasiados bigodes para ser como o Brasil, para além de que aqui se bebia mais vinho tinto a martelo do que caipirinha, como não podia deixar de ser no país com a maior taxa de penetração do grande flagelo infecto-contagioso do século XX: o benfiquismo, doença incurável com picos de elevada parvoíce durante a pré-época. Mas a culpa foi de Jarbas, que assim que viu “Beira-Mar” num pedaço de papel disse logo que sim e assinou de cruz, que era a única forma que ele sabia como assinar, pensando que era um clube de praias com coqueiros, mulatinhas com tangas minúsculas, cheiro a maresia e coisas do género. A parte do cheiro a maresia era verdade, vá lá. E quando cá chegou, deu logo de caras com o Dinis. O anti-clímax total.

Dinis, imponente, puxou a culatra atrás, “rrrrrrrrrr”, e soltou uma escarreta para o chão, “ptui!”, que deixou Jarbas abismado. Dinis era idolatradíssimo com a sua barba de Sandokan e, não raras vezes, sacava estrelas ninja do seu turbante com que cortava jogadas e membros dos adversários, se a situação o exigisse. Dinis só falava inglês. Para o estilo. Tinha sotaque de John Wayne e gostava de olhar Jarbas de alto a baixo com as mãos nas ancas. “Whassup, dude? Comin’ here to play some real stuff, hey?”, disse-lhe em tom jocoso, enquanto mascava uma caneleira só para o cenário, cuspindo os restos para dentro de um balde, ao jeito de quem masca tabaco num saloon de velho Oeste. Depois apareceu o Zé Ribeiro, um religioso convicto, que mal viu Jarbas soltou “Oh, meu Deus!” e Jarbas “O que é que foi? O que é que foi?”, sem que reparasse que estava a pisar o Redondo, o que fisicamente até é difícil de fazer sem se sentir, porque Redondo não tinha arestas e raramente parava quieto nos treinos, mal vinha o vento e lá ia Redondo a deslizar sobre o relvado. E quando faltavam as bolas, o que acontecia regularmente após os chutões do Costeado para o quintal contíguo ao Mário Duarte, o Redondo, nas palavras de Dinis, “stepped in”. Todavia, a culpa tinha sido de Jarbas, o Redondo já lá estava mas não se importou, pois estava habituado a ser sempre pisado, pontapeado e maltratado, menos pelo Paquito, visto que o Paquito não percebia as anedotas e uma vez quando lhe disseram para repetir muitas vezes a palavra “branco”, o Paquito disse “branco, branco, branco, branco, branco, branco, branco, branco, branco, branco” e depois perguntaram-lhe “o que é que a vaca bebe?” e ele disse “leite” e o pessoal riu-se todo e ele até hoje ainda não percebeu o que é que correu mal, porque na cabeça dele as bovinas nunca bebem água como os humanos e fazem uma espécie de fellatio auto-induzido à la Marilyn Manson para debelar a sede. Mas tudo bem, estava tudo na boa, o Zé Ribeiro benzeu-se, o Redondo não fez caso, levou com um biqueiro do Dinis e foram todos treinar.
Jarbas iniciou então a sua aventura, tentando ludibriar uma série de pinos no treino ministrado pelo belga Jean Thiessen. Que era melhor treinador que o outro belga, o Waseige, que nem era bem um treinador na verdadeira acepção da palavra porque dizia que o Missé-Missé era um “très bon joeur” e gostava de fumar cigarrilhas, muito menos pedófilo que este, ligeiramente melhor guarda-redes que o Filip de Wilde, tão expressivo como o apóstrofe do Preud’Homme e tinha cabelo menos encaracolado que o Demol. E pronto, de uma penada resumimos a história da Bélgica no futebol português, faltando apenas o Alain, que por acaso também estava neste plantel. Quer dizer, não era por acaso, mas para o caso tudo bem, é uma boa expressão. Jarbas, após algum esforço e uma troca atabalhoada de pés, contornou o primeiro pino, porém derrubou previsivelmente o segundo e parou sem saber bem o que fazer no meio do relvado, bloqueando a dinâmica colectiva do treino. Thiessen perguntou “Então, já ‘tá? Então, já ‘tá? Então, já ‘tá?” como se fosse o Bart e a Lisa Simpson no banco de trás para o Homer e o Jarbas urinou-se pelas pernas abaixo com medo da reacção do Dinis, que estava admirado por finalmente ter alguém que falava a mesma língua em termos de destreza técnica com a bola. “You’re my man”, confortou o Dinis, acrescentando, “but you’ve ruined the training, so the fault is yours”, para desalento do Bugre, que queria mostrar a sua bandolete à saciedade/ à sociedade/ ao Nuno Sociedade (riscar o que não interessa – mas não experimentem fazê-lo no monitor ou mesmo no vosso PDA) no treino e impressionar mais que o cachimbo de água do Abdel-Ghany, que todos pensavam que continha haxixe. Todos menos o Paquito, que era muito inocente e julgava que o Di María só saía mesmo pela cláusula de rescisão, isto com 20 e tal anos de antecedência, ainda o Di María não devia ter nascido, vejam bem. Com o treino arruinado, Jarbas começou a traçar o seu destino. Que não era mais que um segmento de recta imaginária que ia do balneário até ao banco. Entretanto, o Covelo divertia-se que nem um doido com o cachimbo do Abdel-Ghany e era vê-lo marcar auto-golos e agarrar-se à bandeirola de canto a rir-se que nem um perdido para incredulidade geral. O Abdel-Ghany dizia que não percebia a reacção, que aquilo era só umas pedrinhas com sabor a baunilha e que faziam borbulhinhas na água, o que até dava um aspecto lúdico à coisa e era engraçado de ver e cheirava bem e tal. ‘Tá bem, abelha. E o Dreyffus queixava-se que o Covelo não passava o cachimbo a ninguém mas também não se podia queixar muito, porque no campo era o Dreyffus que não passava a bola a ninguém.
Todas as equipas tinham a sua vedeta e Dreyffus era a vedeta do Beira-Mar. Tinha nome de tipo francês importante ou de actor secundário no “Tubarão I”. Só isso lhe conferia autoridade. Aliás, Dreyffus tinha o dístico “VEDETA DA EQUIPA” colado em letras garrafais no vidro traseiro do seu Ford Escort, mesmo ao lado do autocolante da Rádio Cidade e por cima do popular “Perca peso. Pergunte-me como”. Até nisso o Dreyffus destacava-se dos demais, pois Bugre tinha um Opel Ascona, o Redondo nem sabia conduzir, o Abdel-Ghany não conduzia por ser contra a sua religião, o Zé Ribeiro não conduzia por pensar que ia contra a religião do Abdel-Ghany e o próprio Jarbas ia de bicicleta para os treinos. Culpa dele, claro, que se esqueceu das chaves na ignição do seu VW Brasília e disse adeus à viatura. Dreyffus jogava sempre os 90 minutos, mesmo que só passeasse a publicidade às Telhas Campos pelo campo. O que não deixa de ser irónico, porque havia um tipo no plantel que só por duas vezes foi para o banco, em dois gestos de pura caridade de Thiessen. O seu nome: Reydis. Era guarda-Reydis, estava bom de ver. Também, com o Miguel a titular, era difícil. O Miguel era careca e isso impunha respeito. Ou, como diria o Dinis, “He’s a goddamn stylish m.f.”. O Reydis nunca perdoou o Jarbas pela sua sorte e acusou-o de ter sido o seu mau karma o causador da sua situação aberrantemente secundária. O Jarbas lá veio com cartas astrológicas e combinações astrais mas o Reydis não foi na conversa e incompatibilizaram-se logo ali, como Stojkovic e Paulo Bento. Bem, tanto assim talvez não, mas, pronto, estavam tipo Izmailov e Costinha. O Reydis disse-lhe, “Meu, neste banco eu sento-me aqui e tu vais lá para o fundo que não te posso ver nem pintado”, o que deitou logo por terra o body-painting colorido com que Jarbas uma vez se apresentou ao jogo. E depois o Jarbas estragou o banco onde se sentou porque a tinta ainda não tinha secado totalmente. Zé Ribeiro fez o sinal da cruz e largou um “Ai! Jesus!” e o Jesus, que estava na baliza do Leixões, quase que se distraía e comia com um golo do meio-campo do Alain. Ou do Bugre. Era difícil distingui-los. Os dois andavam sempre juntos e havia quem dissesse que aquela amizade era demasiado suspeita. Menos o Paquito, que tinha amigos imaginários com quem bebia chá e estava sempre à espera que aparecesse o coelhinho da Alice no País das Maravilhas para passarem o tempo e para quem a amizade não tinha limites de decência. O Covelo disse que os viu a comer do mesmo esparguete até os seus lábios se tocarem, como n’ “A Dama e o Vagabundo”, mas que não conseguiu ficar acordado até ver essa parte. Ninguém acreditou, mas os rumores costumam ter sempre uma base de realidade. Quem sabe, quem sabe… Aquele banquinho, contudo, ficou irremediavelmente estragado e o clube imputou as culpas ao Jarbas. Como sempre.
À 18ª jornada, Jarbas deu nas vistas. Acertou em cheio com a bola no meio dos olhos do Paulo Campos e deixou-o temporariamente cego. O Thiessen perguntava do banco “Então, já ‘tá? Então, já ‘tá? Então, já ‘tá?” e, após algum esforço, finalmente o Paulo Campos recomeçou a ver, não sem antes ter sido apanhado em flagrante fora-de-jogo uma meia-dúzia de vezes e de ter apalpado dois GNRs junto à linha lateral quando pensava que estava a agarrar uma garrafa de água: um dos GNRs gostou, o outro autuou-o, mas depois achou queriducho e acabou por rasgar a nota de culpa, optando por passá-la antes ao Jarbas, que tinha mais cara de quem cometera alguma ilegalidade. Mas Jarbas estava diabólico naquele dia. Cumpriu os seus primeiros 90 minutos completos. O resultado: um glorioso 0-0. Dinis só lhe disse, em jeito de palmadinha nas costas, “Nevermind…”, e o Jarbas, sem deixar cair a bola no chão, “Tudo jóia, cara, eu vou nevermind isso”, ao que o Dinis ajuntou “… the bollocks, here’s the Sex Pistols is a great album, you shoulda hear it when you’re down, boy. By the way, you really sucked today”.
Naquela altura, Jocielson, que era o progenitor do Jarbas para aqueles que já se esqueceram, já começava a sentir as saudades a apertar. Saudades do dinheiro enviado por Jarbas pelo correio. E porquê? Porque Jarbas se esquecera de comprar selos e tinha dito ao Covelo para comprá-los por si. O Covelo pensava que aquilo era LSD e meteu-os debaixo da língua. Mas aquilo não bateu e o Covelo ficou a ressacar no balneário, deixando Thiessen sem opções no eixo defensivo e obrigando o Dinis a distribuir fruta por dois. “I’m cool with that”, disse o Dinis, mas aquilo era demais até para o Sandokan e o Dinis não sabia bem onde se estava a meter. O Redondo, como era seu apanágio, descaía muito para as zonas laterais, para onde o terreno inclinava, e deixava auto-estradas abertas para o fuzilamento do desamparado Miguel. Portanto, o Jarbas ficou com as culpas de não ajudar os pais por desleixo, deixou o Covelo fora de combate e sobrecarregou o Dinis. Para cúmulo dos cúmulos, Jarbas partiu a bandolete do Bugre durante o aquecimento, o que fez o Alain ficar fulo da vida e entrar numa espiral de sub-rendimento que, afinal, foi um pouco a história da sua vida. Tornava-se cada vez mais notório que Jarbas estava a constituir parte do problema e não da solução. A expressão “ter culpas no cartório” aplicava-se na perfeição a Jarbas, porque uma vez o Dreyffus, farto de tudo, foi a um cartório notarial e autenticou formalmente as culpas do Jarbas. Tinha que haver uma conversa séria com o Jarbas.
Essa altura chegou e o plantel reuniu-se no balneário para discutir o dossier-Jarbas. O Abdel-Ghany acobardou-se e veio lá com as desculpas dele “ah e tal, tenho o Ramadão à minha espera, vou ali ficar de jejum e já venho”. Só voltou no final de Abril. O Dinis, por seu turno, quis fazer o papel do polícia mau e atar o Jarbas a uma cadeira numa sala sem janelas apenas com um candeeiro com uma lâmpada intermitente de 40 W e esbofeteá-lo até ele desistir, mas o plantel, um pouco a medo, recusou e o Dinis perdeu o controlo e desatou a gritar “You fools! We’re all gonna die! DIE!!!” mas depois deu um pontapé no Redondo e aquilo passou-lhe. O Costeado, que era um tipo ponderado, abeirou-se do Jarbas e disse-lhe, “Pá, olha, isto não está a correr bem, gostamos muito de ti, mas se calhar precisamos de dar tempo ao tempo. E como não temos muito tempo, o melhor é talvez procurares outro caminho. Sei lá, o Tirsense. Ou dedicares-te a escrever romances policiais em que apareças como herói, para variar. Qualquer cena”. Jarbas então deixou escorrer uma tímida lágrima, vergastado pelas evidências. “Pôxa, então a culpa é toda dji eu?” e o Costeado “Não temos provas científicas, mas temos a certeza que sim”, ao que o Jarbas respondeu com um dilúvio de choro e baba e ranho e coisas cor-de-rosa que nem queremos saber o que eram ao certo. “Tudo bem”, disse um meio-refeito Jarbas, enquanto fechava a porta do balneário de forma bisonha atrás de si, um clique triste e arrastado, perante o silêncio emocionado do resto do plantel. Depois apareceu o abananado Thiessen que perguntou “Então, já ‘tá? Então, já ‘tá? Então, já ‘tá?” e o Paquito “Hã? O que é que foi?” e todo o balneário rebentou em sonoras gargalhadas de meter inveja às melhores trips do Covelo, o Redondo rebolou-se todo a rir, o Zé Ribeiro disse “Minha Nossa Senhora!” deitado no chão num delírio histriónico, coisa que em condições normais ninguém faria, tal era o pé-de-atleta que por abundava naqueles azulejos encardidos, e pronto, estava restabelecida a harmonia no seio do grupo de trabalho. “You guys rock!”, admitiu um Dinis com brutais dores abdominais de tanto rir.
Aquilo deu para assegurar a permanência na I Divisão, que era o nome arcaico da The League Formerly Known As [Insert Advertiser] League, mas Jarbas voltou atrás com a palavra e ainda ficou para mais 3 épocas. Cada vez jogando menos, é certo, de modo a amenizar as suas culpas, mas o que não mata mói e houve gente que não aguentou. O Thiessen não gostava que lhe faltassem ao prometido e nem pensou duas vezes: foi para a terra de Manneken Pis fazer o que ele fazia e há quem diga que o seu instrumento era ainda de menor dimensão. O Dreyffus mandou o seu estatuto de vedeta às malvas e deu de frosques para esse grande colosso onde podia espalhar o seu estrelato como quem chega a uma praia e estende uma toalha em cima do local onde esteve o cão do lado a fazer umas coisas marotas há cinco minutos atrás que era o Tirsense. O Alain chateou-se com as bandoletes do Bugre e também foi para o Tirsense volvido um ano. E o próprio Redondo, após um dia de tempestade monumental, rebolou tanto e de tal forma que acordou em Santo Tirso e deixou-se por lá ficar passados uns tempos. Entretanto já o Jarbas tinha desaparecido do mapa, por volta de 1992. Supõe-se que tenha voltado ao Brasil, onde encontrou papai Jocielson satisfeito com a sua fazenda e com a sua fábrica de caipirinha clandestina que entretanto montara. Perereca tinha pedido o divórcio, mas lembrou-se que nem sequer tinha casado e um dia abriu a porta e foi apanhar búzios outra vez para a praia e nunca mais foi vista. Jarbas, esse, já não respira futebol. Iniciou uma carreira de sucesso como mordomo de um daqueles magnatas paulistas que só andam de helicóptero, que têm uns cães enormes que matam só com o bafo de tão selvagens que são e que se dedicam a destruir as pretensões de qualquer Zé Carioca que se aproxime da sua filha com cara de periquita e que se chama Rosinha. O seu sonho é um dia substituir o reles do Ambrósio, o seu arqui-inimigo, e colocar uma bomba no Ferrero Rocher para acabar de vez com aquele anúncio. Se nunca mais virmos a patroa do Ambrósio, saberemos que a culpa vai ser, como é óbvio, exclusivamente do Jarbas. Desta vez a sério.

2 comentários:

Anónimo disse...

O melhor texto alguma vez escrito sobre o Beira-Mar. Incluíndo os do Camoes.

A Bola Indígena disse...

É de longe os post mais longo da história do Blog. Parabéns !

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